sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Desnecessidade





Desnecessidade

Não me maculo por meios
Não procuro meios
Eu sou o meu meio
e no meu meio mando eu.

Leila Andrade e Paty Andrade

Catarse



Catarse
 
A solidão desce como um gole ácido e volta quente, corrosiva e perturbadora pela garganta acima. Vomito a alma, vomito a dor das escolhas tronchas. Suo pelos dedos o sangue que encerra toda a dor de alma perturbada e ansiosa de paz, de alheios, de mim.

Somente o vinho e o sorriso de Piaf ousam calar os gritos do silêncio que me percorrem o corpo, na busca por talhos. O vento da madrugada parece tentar enlaçar-me com carinho, para me fazer adormecer e sonhar com as escolhas que poderia ter feito não fosse meu ideal de mulher independente.

A solidão me sacode e atira a realidade na cara, esfrega-me as noites que passava pensando sobre a paz que teria quando carregasse minhas chaves, meus horários, meu mundo. Descubro agora que construí os pilares da vida sobre sonhos adolescentes, sobre sandices que não sei de onde tirei. Nunca ouvi sandices sentimentais em minha casa.

Tolices à parte, o que tenho por escolha e por orgulho é uma casa grande e silenciosa, livros e CDs. Tenho a tortura da alma latente e carente de gente, mas reticente e estupidamente altiva. Tenho as cogitações sobre amores que tive, mas não quis, e amores que gostaria de ter, mas não posso. Tenho esta outra de dentro que berra por talhos para acalmar a dor.


Resta agora escrever, riscar as cicatrizes da alma, verter a agonia de ser.



Leila Andrade

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Countdown









"... ora se não sou eu

quem mais vai decidir
o que é bom pra mim
dispenso a previsão..."



domingo, 15 de junho de 2014

Desenlace





Cada pessoa traz consigo um mundo e vive as pertinências deste até o dia em que resolve abrir as portas para o mundo real. Não creio ser com consciência, pois a consciência verdadeira só os loucos a possuem, mas vejo essa abertura de portas como um chamamento para uma realidade improfícua e dissimulada.

Acho que me traí e só agora percebo que caí na armadilha dos anormais. Eu era tão mais eu, tinha tanto mais eu, me bastava feliz. Não percebi a fronteira que ultrapassei e nem quando o fiz ou como o fiz.

Emudecida, sentei na cama e senti a mesma sensação dos tempos antigos, mas sem lágrimas e cortes. Só agora dei conta de onde cheguei. Acho que me traí sem perceber. Estava já deixando as pertinências alheias misturarem-se aos meus pensamentos, quase me perdi de mim.

Tempos atrás eu fechava a porta com chave e mergulhava em mim, voando nas asas quebradas de meus demônios interiores, autista por opção. Ali era eu de verdade, somente eu. Não fazia questão de pessoas, amores alheios, palavras e atenções. Como deixei a indiferença ir embora é uma incógnita. Nem sei quando passei para a realidade inconsciente, para a vida construída.

As pessoas deixam de se perceber em algum momento de uma existência, deixam as paradas por causa das reuniões. Quem volta? Poucos voltam, voltam e se permitem ou são permitidos.

Tenho a sensação de ter estado em coma por anos. Coisa estranha essa de olhar meus feitos e desconhecer as motivações. Como consertar tudo isso? Não sei mais. Sei somente que voltei, voltei pra mim.



Leila Andrade

segunda-feira, 9 de junho de 2014



“Que o teu corpo não seja a primeira cova do teu esqueleto.” 

JEAN GIRAUDOUX

sexta-feira, 21 de março de 2014

Salvação



Cartas prontas, roupa escolhida, ligações feitas. Luz acesa, quarto organizado, pensamentos bagunçados, talhos iniciados.

Os olhos refletiam o vazio da alma. Sempre pensou que estava fadada a um destino podre, à inutilidade de uma vida marcada pela sensualidade e pela malícia. Não se sentia assim na infância, mas viu-se como um corpo vazio entre corpos de mulheres e homens durante o pouco tempo de adulta.

Lágrimas escorrendo, sangue maculando o vestido, memória rasgando-se em clarões e raios. Um grito, a dor, um arrependimento, o vazio da morte solitária.

As mãos tremiam a frieza do coração aflito. Lembrou-se da tia que ousou ter o mesmo fim que ela. Pensou nas frases que sempre ouviu das amantes. Chorou.

Pulsos abertos, lençol manchado, silêncio. A partida trazia a certeza de que ela sempre esteve fadada ao luxo e ao lixo alheios, como uma boneca de louça em mãos impuras. Lembrou-se da mãe, pediu perdão a sua amada, que ligou no último instante ,  fechou os olhos, bebeu as lágrimas da morte.


Leila Andrade

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Protótipos











As conveniências da vida nos moldam, torturam, emolduram. Talvez sejamos exteriormente a encarnação do que gostaríamos de ser, protótipos da perfeição sonhada, como bonecos manipulados pelo eu verdadeiro; bonecos que fingem não sentir a dor das palavras alheias, as decepções da insegurança sentimental, o cansaço da hostilidade de viver.

Falsa perfeição! Basta olhar mais de perto para ver os lapsos acontecerem . Não há um homem sequer que consiga manter-se inabalável dentro da armadura, pois todos somos passíveis à submersão da verdadeira essência. A carcaça de humanóide nem sempre suporta as instabilidades da existência e rompe-se turgidamente para fundir-se ao meio concentrado das pressões.

Fazemos escolhas como seres perfeitos, aliás, nosso protótipo escolhe o que melhor convém. Entretanto, a dor é sentida pela alma, é a essência do verdadeiro ser humano que transita entre a tristeza e a alegria continuamente. Como as consequências nunca falham -eis a verdade da qual não esqueço-, o segredo da boa sobrevivência é saber decidir, posto que as oportunidades são imprescidíveis, o estar aqui é único, traiçoeiro e tão efêmero quanto o vento.

Leila Andrade